Projeto Alegria: PRV – 37 anos de ensinamentos

Autores

  • Luiz Carlos Pinheiro Machado Presidente do Instituto André Voisin, Porto Alegre

Palavras-chave:

Fazenda Alegria

Resumo

Delegadas e delegados de países amigos!

Companheiras e companheiros!

 

Quando recebi a comunicação que iria fazer a abertura deste maravilhoso evento, o seu coordenador me determinou: “faz um apanhado das lições que a Alegria te deixou”

 – Ei-las:

 

Amigas e amigos.

Este é um momento de glória em minha vida; abrir o III Encontro Pan-Americano de Manejo Agroecológico de Pastagens: PRV / nas Américas:

Peço desculpas se meu pronunciamento for interrompido pela emoção: afinal são 37 anos de minha vida onde, enfrentando todas as dificuldades e adversidades, desenvolvi um trabalho pioneiro, com o claro objetivo de produzir alimentos e produtos limpos, sem veneno, protegendo a biodiversidade, o ambiente, o bem-estar animal, o bem-estar humano e o bolso do produtor. E isto foi conseguido em uma atividade que só foi interrompida porque a chaga social que vive meu País gerou delinquentes que, em conivência com a polícia, me obrigaram a abandonar um trabalho pleno de resultados, lições, experiências, dúvidas e contradições!

Corria o malfadado ano de 1964. Exatamente quando a humanidade, a 20 de dezembro, perde um gênio: André Voisin! Criador das quatro Leis Universais do Pastoreio Racional. À época eu era o professor catedrático mais jovem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com a responsabilidade de lecionar as matérias de Gado leiteiro, Suínos, Aves e Nutrição animal. Possuía uma área de 126ha, a “Fazenda Alegria”, à margem direita do km 75 da Rodovia RS-020, – Porto Alegre – Taquara – a 5km da cidade de Taquara-RS.

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Solos arenosos, dilapidados por cultivos anteriores de mandioca, restando um solo muito pobre, 0,96 p.p.m. de fósforo! A pastagem original era basicamente formada por diversas espécies de Paspalum, três bosquetes de eucaliptos e dois pequenos bosques com espécies nativas. O início foi muito difícil, pois a área estava infestada por formigas cortadeiras. Cheguei a pensar em tamanduás para controlá-las... Com o PRV, em dois anos desapareceram. Foi minha primeira lição: em PRV bem manejado as formigas, como quaisquer outros parasitas, não atacam as plantas. Mais tarde encontrei a explicação com Chaboussou (1970) (os parasitas têm precário sistema enzimático e não atacam plantas com seiva com alto peso molecular e com Pottenger (1965) e Auber (1985). Os pastos em PRV têm seiva em proteólise, alto peso molecular, e não são atacados pelos parasitas.

A fazenda era cortada de leste a oeste, pelo rio dos Sinos. Na parte sul, margem esquerda do rio dos Sinos, desenvolvia a produção leiteira com vacas Holandês. Na época mantinha um permanente intercâmbio profissional-amistoso com o eng. agr. Nilo Romero, de Bagé-RS, que trabalhava com gado de corte. Nilo é o pioneiro: começou seu projeto PRV, na Granja Conquista em janeiro de 1964, um mês antes de mim... que fiz minha primeira divisão de área, em fevereiro de 1964.

Como catedrático sobre gado leiteiro e tendo uma área adequada à produção de leite, senti-me na obrigação de realizar nessa área a produção leiteira. E o fiz, rigorosamente como correspondia, de acordo com a “melhor” técnica recomendada pela ciência, cujos conceitos eu levava aos meus alunos. Ao final do primeiro mês de produção como leiteiro, recebo a fatura da indústria a quem vendia o leite. Muito orgulhoso, visualizei a coluna “crédito”, para ver meus primeiros ganhos como “leiteiro”. Meu entusiasmo durou pouco: na coluna “débito” deixava para a indústria exatamente o que havia produzido com meu trabalho durante um mês! Nesse momento o professor catedrático se dá conta que a vaca é um ruminante e que o alimento do ruminante é o pasto...

Fui então a meus colegas da “área” pastagem e indaguei como produzir leite à base de pasto; que pastos usar e como se manejavam. As respostas foram evasivas e me dei conta que minha pergunta não fazia parte de suas preocupações “cientificas”. Coincidentemente, nessa época faço uma viagem à França e, sendo meu hábito visitar as livrarias nos maiores centros, fui à livraria “La Maison Rustique”, em Paris. Estava percorrendo as estantes com diversos títulos, quando me chamou a atenção duas pilhas de livros no balcão, que se vendiam fluentemente. Eram “Productivité de l'herbe” e “Dynamique des Herbages” de André Voisin. Comprei ambos com a natural curiosidade. Li Produtividade na viagem de retorno e fiz, para mim, o seguinte comentário: “mais um a dizer coisas diferentes”... não entendi. Mas, o “veneno” ficou em meu cérebro, e voltando à Alegria, solos extremamente pobres – P com 0,96 p.p.m.! – fiz seis parcelas de 20x30m, cercadas com cerca elétrica, “novidade” que trazia da França e recomendei ao encarregado que deixasse as vacas do tambo (leitaria) passarem a noite naquelas pequenas parcelas. Quando, uns 15 dias depois, volto à “fazenda”, tive uma enorme surpresa: os retângulos estavam com pasto verde, contrastando com o pasto pobre das áreas vizinhas! Então, reli Produtividade e entendi...

 

A primeira divisão de área, - 50 parcelas de 1 ha cada – como se vê na Fig. 1, resultou de uma aparente obviedade: dividir a área em um corredor central e repartir os potreiros a cada lado do corredor. Erro original, que, todavia, foi um enorme avanço, comparando com os pastejos extensivos. Foi corrigido em 1975, quando desmanchei todas as parcelas e fiz uma nova divisão. Na Figura 2, incorporando já uma série de inovações aprendidas em 11 anos de Alegria e numerosos projetos em vários estados brasileiros e na Argentina: água em cada potreiro com bebedouros circulares, corredor perimetral, potreiros quadrados na medida do possível, sistema viário, respeito à topografia, efeito saliva, trofobiose, ciclo do gás etileno no solo (Winddonson, 1989), transmutação dos elementos (Kervran, 1950; Mejiulin, 1960), hierarquia social dos animais e tantos outros, que fizeram da Alegria um projeto de alta eficiência.

 

Figura1. Primeira divisão de área - 50 parcelas de 1 ha cada

 

 

Figura 2. Divisão de área após 11 anos de experiência.

 

A divisão com água em pequenos açudes e em algumas parcelas, logo mostrou seus erros e inconvenientes, me obrigando a uma reformulação completa, já com experiências de outros projetos e, principalmente, com o conhecimento das pesquisas da francesa Jeane Marie Bouissou (1974), sobre a hierarquia – dominância e submissão – no comportamento bovino.

Com o novo projeto as dificuldades sumiram e, por razões pessoais (fiz concurso para o Departamento de Zootecnia da UFSC, onde iniciei a primeira disciplina de Etologia (comportamento animal) da América Latina, 1979, encerrei a produção leiteira e segui meu projeto PRV com gado de corte (bovinos e búfalos), manejo mais simples permitindo minhas ausências, porque tinha um encarregado – Luiz Carlos Soares – que entendia do manejo do solo, do pasto, do animal, que cumpria com rigor e disciplina as “instruções” que deixava por escrito. Assim se fez o Projeto Alegria – PRV, encerrado em 2001, após ter sofrido 12 assaltos à minha casa, onde residia, com a conivência comprovada da polícia. Eram 37 anos da minha vida com enorme dedicação e numerosos resultados positivos que, por motivos insuperáveis abandonei... Ofereci a área à venda a três universidades e, sequer, tive resposta...

            Nesses 37 anos houve um fecundo intercâmbio entre minha atividade como consultor internacional em PRV e o Projeto Alegria que, com apoio teórico de uma boa bibliografia, resultou no livro “Pastoreio Racional Voisin” (2004) edição da editora Cinco Continentes, Porto Alegre, publicado também na Argentina, pela editorial Hemisferio Sur. Tem havido numerosas reimpressões na Argentina e, no Brasil, pela editora Expressão Popular, São Paulo.

 

            Continuo meu “relato” com uma dúvida. No início recebi muitas críticas e me diziam: “será que o batalhão está errado e tu estás certo?”. Eram observações desinteressadas de amigos preocupados com minhas posições. A pressão foi tal que me criou a dúvida. Me lembro: era uma tarde chuvosa, estava no portal da minha casa com a dúvida no cérebro, que me incomodava. Pensei profundamente em todo o processo e decidi caminhar pelo campo e o fiz. Quando saía, um acontecimento insólito: uma revoada com centenas de sabiás passou diante de mim!!! Seria uma mensagem? Olhei os pastos rebrotando verdejantes, os animais deitados “felizes” ruminando, os pássaros entoando a sinfonia do poente, a natureza tranquila e exuberante. Lembrei-me do início, uma área invadida por formigas, árida, com níveis ridículos da análise do solo e, agora, o pasto verde suculento, exuberante e os animais sadios e satisfeitos. O solo, mesmo arenoso, repleto de minhocas. Comparei com o vizinho, o aramado mostrava, de um lado o vizinho com pastos ralos e gado magérrimo; Alegria, animais sadios, gordos e, decidi continuar pensando “não sei se o batalhão está com passo errado, só sei que estou certo!” e continuei e hoje temos o PRV consolidado, não em países, mas em continentes! Curioso é que muitos falam contra o PRV usando adjetivos: “não funciona é caro, porque não se generaliza se é tão bom e outros epítetos pejorativos”. Curioso é que nenhum “sábio” aceita discutir publicamente essas acusações...

            Observando os pastos, manejados em seu ponto ótimo de repouso e com desnate e repasse, verifiquei que a composição florística, botânica, os modificava e, às vezes, drasticamente. Isto me levou a observar atentamente como se davam esses câmbios. Da planta fui ao solo e aí encontrei uma outra verdade dificilmente referida na literatura: a vida do solo. Foi quando em 1975, tomei conhecimento das micorrizas através do livro “Um testamento agrícola” de Sir Albert Howard. Tema complementado pelos trabalhos de Sara Wright (2001), descobridora da glomalina, agente básico na agregação dos componentes do solo. Quando, em 1975 comentei sobre micorrizas e, em 2000 sobre glomalina e sua importância no estudo de fertilidade dos solos, recebi de um professor na UFRGS e de outro na UFSC, um sorriso irônico de dúvida como resposta... Hoje são temas básicos quando se analisa e fertilidade dos solos.

            Muitas vezes a produção de pasto era superior à possibilidade de consumo pelos animais. Numa dessas vezes, a Alegria tinha uma pastagem exuberante que meus animais não conseguiam consumir. No meu vizinho os bovinos magérrimos e sem pasto, não tinham o que comer. Pensei então em usar os bovinos do vizinho para consumir o excedente da Alegria. Pedi a meu encarregado oferecer gratuitamente, ao vizinho pôr seus animais na pastagem da Alegria. Com surpresa, tive a resposta que o vizinho não queria e agradecia. Intrigado com a insólita negativa, pedi ao Luiz saber por que não aceitava uma oferta tão generosa. Resposta: “porque minhas vacas vão aprender a comer e não terei cerca para contê-las”. Isso aconteceu!

            As agressões não foram poucas... Mesclaram-se com a inveja: um professor da UFRGS (isto é relatado também nas “observações”) afirmou em aula, comentando a implementação da setária e recomendando todo o procedimento convencional. Equivocado, comenta: “quero ver o Pinheiro ter setária sem lavrar o solo”. Eu tinha setária em um potreiro, ao norte do projeto e, via animais, houve uma forte “infestação” de setária em um potreiro ao sul, distante do potreiro antes citado. Quando vi aquele belo espetáculo comentei com Luiz: “O S. precisaria vir aqui ver como a setária se propagava sem lavrar e sem semear. Os animais fazem a sua disseminação via bosta e também levando as sementes nos “cascos”.

            Diziam que eu usava calcário à noite... Em dado momento, fiz calagem em alguns potreiros para ver seu efeito, que foi nulo. Mas, para evitar os comentários maldosos, quando veio a carga mandei descarregar junto à porteira de entrada. Assim, ficava visível que iria usá-lo... O projeto recebia muitas visitas que se admiravam da lotação (carga animal) e do estado corporal dos animais. As “más línguas” diziam que eu colocava o gado do vizinho para impressionar as visitas...

            O único equipamento mecanizado que usei foi a roçadeira, implemento excelente e necessário no manejo dos pastos. Era usada para completar o pastoreio, deixando no solo as restevas trituradas não consumidas pelos animais. Faulkner, 1945, afirmou que não havia um único trabalho científico que justificasse o uso do arado, verdade vigente até hoje! O arado é um dos responsáveis pelas catástrofes climáticas das regiões produtoras de grãos. Vide o dramático quadro atual das grandes inundações no Pampa úmido Argentino. Para as áreas onde não é viável a mecanização – pedras e outros obstáculos – criei as “roçadeiras” biológicas”, que são vacas de descarte, com boa dentadura, que complementam satisfatoriamente o manejo racional dos pastos.

            Em 1974 inaugurei uma irrigação por aspersão com a presença de “autoridades” inclusive do arcebispo metropolitano de Porto Alegre, Cardeal Vicente Scherer. Até 2001, em 25 anos, havia usado somente em quatro verões, e no último uso, recebi uma conta impagável pelo consumo de energia elétrica, que foi tarifada como boate...

            Na prática da produção PRV aprendi que a ivermectina é a antítese da vida; não pode ser usada (e seus derivados) em animais em PRV; as formigas são muito “respeitosas”, quando melhora o nível de matéria orgânica do solo, se vão; os búfalos vão para os charcos para se protegerem dos piolhos, com correto controle parasiticida os charcos são dispensáveis; assisti a uma cena insólita com búfalos: estavam dois dentro d’água no açude do potreiro 12. Estava com Luiz conversando sobre o projeto e olhando a paisagem. De repente, dois búfalos saem d’água e, mansamente caminham para um bebedouro circular onde tomaram água e voltaram para o açude. Eu disse ao Luiz, quando eu relatar o que acabamos de ver, vão pensar que é mentira...

 

Disciplina – Um dia eu caminhava pelo campo com Luiz e paramos em uma parcela com árvores de maricá (Mimosa bimucronata Kuntze) e afloramento de arenito com a rocha desnuda, Luiz havia reunido galhos secos de maricá para ir formando um solo. Tratando-se de galhos espinhosos e estando sobre a rocha exposta, pensei que se poderia queimar para deixar um resíduo de cinzas sobre a rocha. Então disse a Luiz: “aqui, como tem rocha abaixo, podes queimar”. Resposta do Luiz: retirou o isqueiro do bolso e me entregou com a frase: “queime o senhor, eu não”! Exemplo de disciplina, compreensão, inteligência e educação.

 

O desastre – Sempre fui muito disciplinado em aplicar as recomendações dos profissionais qualificados. No final da década de 1950, ainda sem PRV, comprei um lote de bezerros desmamados e pedi ao catedrático de parasitologia, meu colega no curso de veterinária da Faculdade de Agronomia Veterinária da URGS, na época, a indicar-me o tratamento que devia seguir para controlar os parasitas gastrointestinais. Me deu um “protocolo” que com rigor absoluto foi seguido (tinha na Alegria instalações que me permitiam a realização de todo o protocolo com o devido rigor). Os terneiros não melhoravam de aspecto e começaram a morrer, eu seguindo rigorosamente o protocolo do professor catedrático. Quando perdi o 50º terneiro consultei meu irmão Glacy, veterinário e professor da referida faculdade. Ele me respondeu “faz uma aplicação com Ripercol” Fiz e a mortalidade sumiu e os terneiros passaram a ganhar peso! Esta foi a segunda experiencia desastrosa que tive em minha vida profissional. Outra foi numa fazenda em Araraquara, São Paulo, com suínos. Os “clássicos” diziam que a criação em piso lajeado evita a verminose, o que eu acreditava piamente... Até que tive uma forte mortalidade de leitões. Resolvi abrir um leitão que havia morrido e encontrei uma infestação verminótica generalizada... Outra vez a cátedra foi diferente da realidade. É que os experimentos em geral são realizados em ambientes controlados e, a prática, se dá ou se faz em ambientes naturais com múltiplas influências que os experimentos em laboratório são eliminadas. Obviamente que ao relatar dois graves problemas que ocorreram em minha vida profissional, não desejo, nem de longe, criticar a pesquisa em geral, tão necessária e urgente no desenvolvimento do Pastoreio Racional Voisin e da vida. Mutatis mutandis, é como disse Voisin! “Quando se fala de pasto, há que consultar a vaca” ...

 

Sanidade – É da essência do PRV altas cargas instantâneas em pequenos espaços os potreiros. Portanto, há uma alta concentração de animais que se constitui em um elevado fator de contaminação.  Esta é uma parte do problema. A outra é, segundo Howard, que animal bem alimentado como é o caso em PRV, não adoece. Mas, sempre é melhor prevenir do que remediar. Por isso em 37 anos de Alegria, a exceção de um desastre com bezerros que comentarei em outro momento, não tive qualquer problema sanitário com os animais. A rotina era a seguinte: 1- cumprir, rigorosamente o plano de vacinações de todas as enfermidades possíveis de vacinações; 2- carrapato: observar a incidência que foi sendo reduzida com o passar dos anos – e quando se notava a presença do parasita, aplicava um banho carrapaticida por imersão, que era repetido 20 dias após. Se persistia a infestação, fato raríssimo, repetia, sucessivamente, banhos a cada 20 dias até o carrapato desaparecer; 3- parasitas gastrointestinais: dois tratamentos estratégicos na entrada da primavera e na entrada do outono. Tratamento com produtos brandos da família dos bendazole. A conduta constitui em duas aplicações – tomas – em cada tratamento com 12 dias de intervalo. Nessas aplicações, na primeira eu usava 50% mais do vermífugo que o indicado na bula, por segurança porque 5mg/kg p.v.é uma indicação de laboratório, fácil de não ser cumprida rigorosamente a campo; 4- mosca de chifre e berne – usava “poor-on” com base de piretrinas.

            Recomendação expressa: não usar, sob nenhum pretexto, produtosà base de ivermectina e seus derivados, porque são venenos que inibem a biocenose do solo, base do PRV. Na parte vegetal, nunca tive infestações de pragas e doenças, motivo porque jamais usei praguicidas. Não esquecer que vida do grego, significa morte e, na Alegria, trabalhava pela vida, bio...

 

A Alegria e a ciência – Sempre tivemos a preocupação de proporcionar a estudantes, técnicos e professores o ambiente e as instalações de Alegria – modestas, mas eficientes – para as diversas atividades acadêmicas. Nesse objetivo, registro a presença numerosa de estudantes de agronomia, veterinária e zootecnia que fizeram seus trabalhos de conclusão de curso na Alegria; em um plano mais elevado, tivemos duas teses de mestrado lá desenvolvidas: de Ribeiro Filho, 1993, comparando ganho de peso entre búfalo e bovino. O ganho de peso /ha foi de 472kg peso vivo e os búfalos tiveram um ganho de peso duas vezes superior aos bovinos e Simone Rigotti, 1999, comparando níveis de elementos do solo com o vizinho, encontrando na Alegria, 28 ppm de P solúvel e 100 ppm de P total. E o vizinho, com apenas 2 ppm, de P solúvel e traços de P total. Isto sem usar fertilizantes. Essas duas teses robusteceram minha convicção a favor da transmutação dos elementos via biológica.

            Tivemos muitas visitas de turmas de estudantes e de cursos de mestrados doutorados, tanto de diversos estados brasileiros, como do exterior. Também recebemos muitas visitas “ilustres” como Cardeal Vicente Scherer, arcebispo metropolitano de Porto Alegre, professor Tony Cunha; University Polytenic, Califórnia, USA, Ramon Castro e Carlos de Leon, La Habana, Cuba. Registro também, as visitas de produtores e interessados. Em um ano registrei a visita de mais de 2.000 pessoas!

 

Lei da fertilidade crescente – A agronomia convencional tem a lei da fertilidade decrescente, que diz: “a fertilidade dos solos é decrescente à medida que são usados agricolamente”, isto é, com o “preparo do solo”, fertilizantes e agrotóxicos. Se uma cultura/retira x kg de P do solo, há que repô-lo, com o decrescimento sucessivo de sua fertilidade. Desde que se implantou a predadora “revolução verde” na década 1950, até nossos dias, o nível de matéria orgânica (MO) nos solos do mundo baixou de 3% para 1,5% (FAO, 2007).

            Nos solos com PRV há um aumento da MO. Monti et al. (2018) fizeram uma avaliação da MO do solo de El Verdadeiro Paraiso (EVP) comparado com o vizinho e há evidente superioridade nos solos EVP, com PRV e sem agressões e ou fertilizantes e agrotóxicos.

            Baseado nos resultados da Alegria, da Argentina e Escambray, Cuba onde houve expressiva melhora dos solos com PRV, enunciamos a “Lei de fertilidade crescente que diz:” “A fertilidade do solo, manejado sem agressão – arado e procedimentos similares – e com técnicas que estimulem a biocenose, é crescente, indo a limites ainda não identificados” (LCPM, 2004). O quadro a seguir expressa a “qualidade” química do solo da Fazenda Alegria, análises 1959 a 1999 e a evolução da sua fertilidade.

 

Tabela 1. Evolução do teor de fósforo Projeto Alegria, Taquara, RS em 35 anos de Pastoreio Racional Voisin.

Componentes

1959

1993

1999

 

Alegria

Vizinho

MO - %

0,19

1,5

1,4

0,8

P solúvel - ppm

0,96

16,0

28,2

2,3

P total - ppm

 _ _ _

 _ _ _

100,0

Traços

K - ppm

2,15

71

59

73

Fontes: CIDASC, 1999; UFRGS, 1993; AS/RS, 1959

 

 

            Relendo no livro os diversos relatos, dos quais farei alguns extratos, há diversas referências sobre a ausência ou redução da biocenose na bosta dos búfalos. Erradamente, atribuí esse fato a uma condição fisiológica negativa dos bufalinos. A quatro de maio de 2018, ministrando um curso PRV no Instituto Importa, em Salermo, Itália, percorrendo os potreiros com búfalos fui surpreendido por bostas com enorme povoamento de minhocas! Estupefato vejo o fato. Associei esse fato ao que ocorreu na Alegria; eram búfalos originários de um criador que os criava em áreas alagadiças e eram tratados preventivamente com altas doses de Ivomec, produto à base de ivermectina. Esses búfalos levaram consigo o veículo de morte, a ivermectina, e suas bostas tinham a biocenose inibida pelo efeito residual do veneno. E os búfalos, inocentes, levaram a culpa! A bosta dos búfalos são diferentes das bostas bovinas, mas, não que eu saiba, tenham qualquer fator inibidor da biocenose e têm um ganho de peso superior aos bovinos (Ribeiro Filho, 1993).

 

            Durante um período – 1992 – 2001 – fiz alguns registros sobre como eu via e sentia meu projeto. Muitas vezes são registros carregados de emoção, como é normal quando se lida com a natureza

Eis um excerto:

 

Introdução, julho de 1992- “As transformações ocorridas na flora, fauna inexplicáveis pela agronomia convencional.”

Outro: “Passados mais de um quarto de século, tenho acumulado uma experiência em vários lugares do mundo, tendo recebido toda sorte agressões, tendo vivido e superado dúvidas sem qualquer ajuda do ‘establishement’, volto-me aos meus pastos e com eles dialogamos com o que fizemos tão sem pretensão, mas com tanta decisão para o bem humano. Por isso nós, a comunidade do Projeto Alegria, formada por seus pastos, suas minhocas, seus seres, seu ambiente e principalmente por um grupo incomensurável de pessoas, podemos olhar retrospectivamente e concluímos que este foi um trabalho, um esforço e uma pertinácia úteis.”

E também: “Uma palavra ao agente principal das transformações aqui ocorrida, a vaca este animal nobre que é capaz de transformar a energia solar nos alimentos mais nobres para o humano, o leite e a carne, além da couro e outros produtos, à vaca que generosamente deposita o veículo da vida, o catalisador da biocenose, a bosta: à vaca que me ajudou a compreender o seu mundo e me levou a essa maravilhosa ciência que é a Etologia. À vaca, minhas homenagens.”

 

1º de fevereiro de 1997 - “Buscando coisas encontrei este livro. Passaram-se quatro anos e parece que foi ontem.

“Para os ocupados o tempo voa...”

 

27 de julho 1997 – “O que foi observado em fevereiro de 1997 está pior, cercas desmanteladas, gado por toda parte, búfalos sem água, enfim uma forte regressão, principalmente na administração e disciplina. Devo autocriticar-me como o principal responsável, pois neste ano estive muito pouco tempo aqui. Sem dúvida, em um método racional, o cérebro é o principal insumo. PRV é para gente inteligente, dedicada e disciplinada.” PRV é simples, mas não é fácil.

 

29 de agosto de 1998 – “Quando a ciência agronômica desvencilhar-se do atrelamento aos interesses da indústria e voltar-se para as grandes questões que a natureza nos coloca e que precisam ser compreendidas, haverá um progresso tão vertiginoso na produção de alimentos sadios, que o problema maior será a desintoxicação do solo “doente” como tão bem caracterizou o Hélio, horticultor paranaense ao referir-se ao solo deixado pela agronomia convencional”

 

6 de dezembro de 1998 –  ... “Uma chuva torrencial obrigou-me a cortar a visita (do 30º curso de PRV) pela metade. Todos magnificamente impressionados, com uma exceção lamentável e dolorosa, lamentável porque quando a mente está obliterada até os raios solares são escuros (vejam a situação política do Brasil hoje, 30/10/2018); dolorosa porque a forma capciosa como acompanhou a visita poderá comprometer um projeto maior (como comprometeu!). O idiota lageano, mesmo diante do fato de enterrar a vara no solo, algo realmente notável, diante de seus olhos não acreditou... A pequenez humana é tão imensa quanto à sua grandeza.”

 

5 de maio de 1999 – ... “Caminhei pelo 24. Há muitos coprólitos, mas nas bostas de búfalos, nada. Há muita braquiária sementada e, o que mais se destaca é uma parte do potreiro coberto com Setária, semeada via bosta e sem qualquer agressão ao solo. Seria bom que o filho da puta do S visse esse espetáculo e comesse a Setária existente, já que em aula na Agronomia da UFRGS afirmou: ‘Quero ver o Pinheiro plantar Setária sem lavrar.’ Não foi o Pinheiro que semeou foram os animais, aliás, mais nobres que ele...”

 

24 de maio de 1999 – ... “O estado vegetativo é passado do ponto ótimo de repouso. Observações a registrar: As folhas basais maduras (mortas) são excelentes indicadores do ponto ótimo de repouso e, portanto, de uso; preferência demonstrada pelos bois... Quando as folhas basais amadurecem, passou o ponto ótimo de repouso”.

 

5 de setembro de 1999 – “Aí está o resultado das observações anteriores relativas à pouco ou nenhuma contribuição da bosta do búfalo ao desenvolvimento positivo da biocenose. É urgente retirar os últimos 25 búfalos. Eis também o resultado da penúria financeira que me obrigou a receber búfalos em capitalização.

O pobre sempre paga a conta...”

 

16 de janeiro de 2000 – “O bom profissional deve ter a virtude da dúvida e a segurança da convicção”.

 

23 de dezembro 2000 – ... “Com o reingresso dos bovinos e saída dos búfalos, houve uma extraordinária recuperação das pastagens. O projeto voltou aos seus grandes dias, ... Trabalhando no livro, me dei conta de que quando sobra pasto, o excedente que está no seu ponto ótimo de repouso, deixá-lo sem uso, é um erro; o excedente deve ser transformado em reserva – feno ou silo – ou, no limite, roçar e deixar sobre o solo, com a degradação da celulose, que é feito por bactérias fixadoras do N atmosférico e produz ácido carbônico, importante solubilizador natural dos elementos nutritivos das plantas. Esse procedimento, de sempre usar ou cortar o excesso de postos em seu ponto ótimo de repouso, produz uma significativa economia no consumo de água pelas plantas. Baseado num  “novo” conceito decidi roçar o 24 que está com uma pastagem magnífica e em ponto de uso. Luiz reagiu! Disse ser uma ‘barbaridade’ ‘perder’ esse pasto! Expliquei-lhe os motivos teóricos e está roçando alegremente” ...

 

28 janeiro de 2001 – “Mesmo roçando potreiros sem pastorear, há uma enorme sobra de pasto, Verdade que tem chovido diariamente e com tormenta, o que deve produzir boa incorporação de nitrogênio. Estive percorrendo o Cameron para ver a diferença no rebrote entre o cortado a facão e o roçado o mais baixo possível. Com surpresa vi que não há diferença no rebrote e a vida me dá mais esta lição: como as gemas de rebrote principais do cameron são subterrâneas, ou quase, mas sempre rente ao solo, há um rebrote que o que vem debaixo, não havendo diferença, hoje, na parte aérea! Nota: nesta data de madrugada, recebi uma chamada telefônica de um dos delinquentes que havia brigado com o ‘chefe’: foram cinco assaltantes e me deu o nome e endereço de cada um e o local onde estavam os objetos roubados. Fiz uma nota escrita e levei ao delegado de polícia, pedindo que a polícia recuperasse meus pertences. Resposta do delegado ‘Não posso fazer nada, não houve flagrante e não tenho ordem judicial’, embora o despacho do(a) juiz(a) estivesse a menos de 200m da delegacia...”

Decidi, então sair incondicionalmente da fazenda e coloquei um grande cartaz anunciando à sua venda. Muito triste, mas dolorosamente necessário!

Alguns registros do livro feitas a 28 de novembro de 2001, após 37 anos de trabalho e vida na Alegria: “Tudo que ocorreu no projeto PRV foi a cabal comprovação de sua justeza, de sua realidade. É sem dúvida, um estágio superior no manejo do solo, dos pastos e dos animais. E, sem dúvida, é o melhor!” (...) “As modificações positivas vividas pelo projeto são notáveis. Lástima que se vai perdê-las! A Alegria devia passar ao controle de uma universidade para serem avaliados os resultados e suas evoluções.” (...) “Encerro este capítulo de minha vida com minhas convicções robustecidas, de um lado a dialética guiando a conduta humana e interpretando as transformações da natureza e, de outro, o Pastoreio Racional Voisin respondendo, na prática a todos os conceitos dialéticos. Não sei se iniciarei outro projeto pessoal. Agora, vou me dedicar à publicação do livro.”

Tudo isso, uma pena!

 

28 de dezembro de 2005 – Retorno as observações com profunda tristeza.

“Encerro definitivamente esses registros: vendi a fazenda! Troquei uma vida por um pedaço de papel... Muito triste, ser forçado a abandonar uma experiência inédita no mundo, motivado pela situação a que as classes dominantes levaram este país! A delinquência organizada com a anuência e a participação da polícia e da Brigada, transformaram a Fazenda, antes um jardim de vida, em um inferno dirigido pela marginalidade. Uma pena! Despeço-me com muita dor!”

 

            O Projeto Alegria, 37 anos de PRV, foi acima de tudo um campo de aprendizado onde, inúmeras vezes e sempre, pude aliar a teoria à prática e o maior ensinamento que guardo desse fecundo período, é a comprovação do saber dos clássicos: teoria sem prática, é tão inútil, quanto prática sem teoria e, que é indispensável e sempre “estudar, estudar, estudar”!

            Ao final, agradeço a carinhosa paciência de todas e de todos em me ouvir. A meus filhos Ângela, Denise e Luiz Carlos (Caco) e sua mãe, Norma Barcellos Pinheiro Machado e às minhas queridas netas Renata, Ana, Paulinha, Julia, Luiza e Marina, deixo um nome limpo; às amigas e aos amigos fica o abraço fraterno; à Agronomia ofereço um legado; a sociedade uma permanente ação a favor da vida e contra a injustiça, a barbárie e aos males do capital e, à humanidade, fica o epílogo de nosso livro A Dialética da Agroecologia:

 

“Nos milênios dos milênios futuros, quando perambularem sobre as areias desérticas dos solos hoje considerados inexpugnáveis e destruídos pelas monoculturas de soja, cana-de-açúcar, milho, eucaliptos, pinus em grandes regiões do Brasil, do pampa argentino e do meio-oeste norte-americano (vide Saara) quando os procedimentos científicos permitirão a reconstituição de uma cidade a partir de uma minúscula partícula, os arqueólogos acharão um fragmento deste livro e o reconstituirão. E então comentarão: no século 21 das eras terrestres houve gente que se insurgiu contra a própria destruição...”

 

 

Obrigado!

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Publicado

2019-02-07