O algodão na vivência e empoderamento das mulheres Mỹky
Palavras-chave:
algodão-mulheres-mykyResumo
CONTEXTUALIZAÇÃO
O Povo Mỹky reside a noroeste de Mato Grosso, à margem direita do Rio Papagaio, afluente do Juruena, a 53 km da cidade de Brasnorte MT. A área territorial demarcada e homologada é de 47.094 ha, sendo que reivindicam atualmente áreas tradicionais do castanhal e tucunzal, pois são áreas importantes para sua sobrevivência física e cultural. São regiões em que as nascentes dos rios e córregos foram totalmente desmatadas. Seu território abrange áreas de Floresta Amazônica e minoritárias de Cerrado, sendo uma das poucas áreas remanescentes de transição entre os dois biomas.
Os Mỹky usam como território de ocupação tradicional as formações florestais densas existentes no vale do Juruena-MT, na Amazônia meridional. Estabeleceram sempre suas habitações nas margens do rio do Sangue, Papagaio, rios que são formadores da Bacia do Tapajós, e seus afluentes: Tenente Noronha, Honorato, Rico e Águas Claras. Essas áreas são absolutamente necessárias para pesca e rituais e existem somente nas nascentes dos pequenos rios. São também necessárias para coleta de remédios que só ocorrem nas áreas alagáveis e muito importantes para estabelecer os aldeamentos conforme o padrão de ocupação tradicional, ou seja: entre as nascentes que desembocam nos vales em forma de “V”, característicos dessa região do vale do Juruena.
O entorno, ou seja, todo o município de Brasnorte sofreu forte devastação ambiental, pois se trata de uma região onde a economia se alimenta da exploração e indústria madeireira, grandes áreas de pastagem e monocultura. Além disso, toda a bacia do Juruena está fortemente ameaçada por projetos de hidrelétricas.
Trata-se de uma etnia contatada em 1971 quando eram apenas 23 pessoas, sendo hoje uma população de 149 habitantes.
O sistema social mỹky tem fortes características que se mantém mesmo após o contato com a sociedade não-índia. Uma sociedade que vive a lógica da reciprocidade e cuja tônica social é a convivência harmoniosa com a natureza, consigo mesmo, com o outro e com o Sagrado. Há sempre uma grande roça comunitária plantada ritualmente assim como roças familiares. As práticas tradicionais de cultivo, caça e pesca são vivenciadas por ambos os gêneros em cooperação entre as gerações. Esses saberes nos ensinam um profundo respeito pela natureza, que para nós é a morada de diferentes “donos espirituais”.
A língua mỹky não é classificada em tronco ou família linguística. Trata-se de uma língua isolada, falada por toda a comunidade e, desde 1979, estudada pela linguista Ruth Monserrat que até hoje assessora os trabalhos linguísticos.
RELAÇÃO DA EXPERIÊNCIA COM AGROECOLOGIA
Nesse contexto, é importante garantir a construção de um conhecimento agroecológico que respeite, fortaleça e reconheça nossas práticas tradicionais e ao mesmo tempo apresente novas experiências de manejo não-indígena.
O trabalho realizado com o algodão segue a forma tradicional de plantio em roças comunitárias, em consórcio com outras espécies alimentares, sem o uso de agrotóxicos, o que se reflete na conservação dos recursos naturais como água, solo e espécies tradicionais.
O povo Mỹky tem conhecimento tradicional sobre a diversidade em seu território. Conhece a denominação de cada paisagem e os recursos provenientes de seu território atual e ancestral. Sua vida se rege pelo calendário agroecológico que determina os momentos de derrubada, plantio e colheita de acordo com as épocas de seca ou de chuva.
A cultura se apresenta na forma tradicional do saber fazer. Confeccionar as redes segue todo um processo que envolve muitos detalhes e que torna o trabalho difícil, cansativo e que necessita de muita dedicação e envolvimento coletivo. Isto inclui plantio, colheita, secagem, até o beneficiamento que se constitui em descaroçar, pentear, fiar, torcer e enrolar, e, segundo a tradição, a confecção de maneira artesanal das redes.
Dentre a diversidade de nossas espécies de plantio, o algodão se afirma e se desenvolve como experiência importante de agroecologia. No contexto da comunidade, esta espécie, seu plantio e uso, são significativos porque o mito mỹky nos conta como o trabalho com o algodão começou desde épocas ancestrais, quando um pássaro, a “namabuzinha”, deu algodão para as mulheres. É significativo também, pois estimula o empoderamento da mulher, porque é especialmente a partir do algodão que ela se apresenta como esteio da comunidade.
Nós, mulheres mỹky, plantamos o algodão branco e o algodão marrom e nossa responsabilidade é transmitir às novas gerações o significado e o uso do algodão na cultura de nosso povo. Colhemos muito algodão fiamos, tecemos, fazemos redes, bolsas, zamata que é a tipóia de carregar a criança.
O algodão torna-se assim uma expressão de nossa arte. Redes, bolsas e até a zamata são utilizadas pelo povo e também são vendidas fora da aldeia. Essa venda é importante para a sustentabilidade econômica de nossas famílias.
Esta forma de confecção e venda das redes mantém as relações entre as mulheres da comunidade e criam-se relações com outros povos, difundindo o modo de fazer. Assim, as mulheres afirmam sua identidade enquanto povo Mỹky, por meio desta tradição, que também conserva o uso dos recursos naturais e garante a ocupação do território.
COMO A EXPERIÊNCIA CONTECEU
Inicialmente, frente a um panorama de desafios e utopias projetou-se para a Comunidade Mỹky o Ensino Médio em Agroecologia: “HORIZONTE ABERTO – “MEKYNPJAHA KAAKIKA”. “Caminho se faz ao andar e o horizonte incita a caminhar”.
A juventude mỹky encontra-se de fato frente a um horizonte aberto, um futuro tão instigante quanto desafiador.
As novas tecnologias, a economia de mercado, os atrativos de uma vida fácil, seguranças ilusórias de salários se contrapõem hoje à prioridade da preservação e sustentabilidade do território, realização dos rituais e fortalecimento do sistema educacional próprio.
O Ensino Médio em Agroecologia se apresentou como caminho rumo ao futuro, ao horizonte de Bem Viver para as novas gerações.
Não foi fácil planejar, programar, estruturar, organizar e finalmente implementar um processo ao mesmo tempo pedagógico e administrativo, carregado de sonhos e de impasses, acompanhado de ventos favoráveis mas tendo também de superar tempestades adversas.
Como aprendemos na vida mỹky, só foi possível fazer acontecer o curso, porque foram muitas as pessoas que, coletivamente, “wátuhowy” esboçaram e implementaram a proposta e continuam agora se comprometendo com sua realização no dia a dia.
Assim foi se desenvolvendo entre nós as práticas agroecológicas e acreditamos na contribuição desse curso para fortalecer e ampliar aqui na comunidade a consciência do atentado à Mãe Terra explorada e devastada, onde se agrava a destruição da biodiversidade, a degradação do solo e das nascentes, a contaminação por agrotóxicos, a problemática das hidrelétricas em toda a região.
Apostamos que esse projeto se concretizará em experiências e práticas agroecológicas transformadoras e que, baseado nos valores fundamentais da cultura sócio-política-econômica-religiosa do povo Mỹky, vai ser, em verdade, um horizonte aberto de Bem Viver.
DESAFIOS
Os desafios se referem muito especialmente ao Hoje e ao Amanhã do Povo Mỹky. A gente poderia chamar de alfabetização agroecológica a aprendizagem dos princípios da agroecologia e a decisão de viver de acordo com eles.
São desafios no âmbito social:
a) A continuidade do conhecimento agroecológico e plantio das roças de algodão assim como a transmissão desse conhecimento para a nova geração. O mito da origem do algodão é uma história que continua viva e presente na vida de todas nós.
Ela é fundamental para as gerações que vem pela frente, por isso é muito importante a gente manter essa história viva no futuro das crianças para elas conhecerem e darem continuidade a essa tradição na aldeia Japuíra e em todas as aldeias que forem existindo.
b) O desenvolvimento dessa experiência e vivência comunitárias a partir do diálogo de saberes e da busca de sustentabilidade no plantio, no uso e na comercialização dos artefatos de algodão. Esse diálogo de saberes é importante. Antigamente a gente não conhecia a carda, hoje trabalhamos com ela! Antigamente a gente não conhecia a roda de fiar, e hoje aprendemos a usar a roda e incorporar em nossa cultura outros saberes de sustentabilidade. Mas é sempre um desafio a gente saber analisar o que é bom e o que não é!
São desafios ambientais:
a) É imensa a pressão que ocorre da parte do agronegócio em nossa região. Em todo o entorno do nosso território existem imensas lavouras e monocultura e assédio de madeireiros. Também existem grande plantações de algodão mas todas com uso de agrotóxico. Esse é nosso grande desafio: manter vivo e defender o nosso território, ter coragem de nos posicionar contra tudo o que atinge e fere a nossa Mãe Terra.
b) Fazer regularmente o monitoramento do território atual e do território reivindicado e lutar pela preservação dos ecossistemas florestais e aquáticos absolutamente necessários para nosso uso, manejo e habitação permanente.
c) Manter viva a consciência de que os impactos ambientais, econômicos, sociais e culturais, na bacia do Rio Juruena, comprometem a vida humana, animal, e vegetal, ferem a Terra e os direitos do Bem Viver dos povos.
São desafios econômicos:
a) A continuidade, manutenção e desenvolvimento de nossas roças comunitárias de algodão, assim como de todos os produtos alimentares, diante do valor de nossa tradição e da sustentabilidade de nossa cultura; b) O planejamento e gestão de nossos projetos e propostas de comercialização dos produtos e artefatos de algodão. É preciso a gente pensar qual é nosso modo de vida porque as comunidades indígenas vivem na partilha, no mutirão que desemboca na Festa, enquanto que no mundo do mercado, do consumo, da competição, o que a gente vê é a desigualdade social. Então, até quando vamos conseguir manter nosso Bem Viver? E qual nosso papel de mulheres nesse processo?
RESULTADOS
1.Nosso empoderamento como mulheres a partir da cultura do algodão: nós mulheres mỹky somos responsáveis por educar e ensinar às crianças . O papel das mulheres é fazer acontecer a Vida, a Festa e a História! Compete às mulheres se encarregarem do preparo do alimento: o beiju, a chicha, a farinha, o melado...
A cultura do algodão, seu uso constante e seu significado para nosso povo é uma experiência de maior importância no processo de empoderamento das mulheres, processo em que as mulheres assumem seu lugar no dia a dia e muito especialmente na defesa dos direitos de seu povo a partir da Constituição, art. 231
2. O valor da cultura agroecológica do algodão: Essa nossa prática de sustentabilidade a partir das roças de algodão é também uma marca de beleza. A partir de nossas roças, todos podem ver que a Mãe Terra fica mais bonita. Nós mulheres mostramos que a cultura agroecológica do algodão pode ser compreendida como um presente muito importante que oferecemos ao mundo.
3.A cultura do algodão e a sustentabilidade econômica: A venda dos produtos de nosso trabalho com o algodão é importante para a sustentabilidade econômica de nossas famílias, porque gera Bem Viver a partir da distribuição de recursos. Tornase, portanto, para nosso Povo uma busca de solução frente às dificuldades financeiras e garantia de vida sempre a partir de nossos valores culturais!
4. Sobre a difusão desse conhecimento e do valor agroecológico do algodão, essa nossa experiência está sendo conhecida porque temos encontros de troca de sementes e não é todo povo que tem algodão marrom. Estamos mostrando nosso trabalho no whatsap para ser mais conhecido e termos melhor venda, mas as redes são encomendadas constantemente.