Agroecologia e formação de educadoras/es do campo: alternâncias como caminho para a construção de uma Ecologia de Saberes

Autores

  • Alessandra Bernardes Faria Campos Universidade Federal de Viçosa
  • Israel Teles Barbosa

Palavras-chave:

Licenciatura em Educação do Campo; Agroecologia e educação para a liberdade; saberes populares e saberes científicos

Resumo

Resumo

No Brasil, pensar numa educação no/do campo contribua para possibilitar a permanência digna no campo e a autonomia dos povos do campo, implica em tocar em dois pontos, fortemente associados: o acesso à terra e às formas de relação e produção na terra. Entendendo essa complexidade, é pertinente e coerente tomar a agroecologia como elemento basilar na Educação do Campo (EdC). No entanto, diante de uma escola e uma universidade conservadoras, estes enlaces não são tão simples de se estabelecer. Aqui apresentamos reflexões envolvendo os caminhos seguidos na efetivação das relações entre agroecologia e EdC, assim como os desafios colocados nesse caminhar. Como referência teórico-metodológica para tecer aproximações entre EdC e agroecologia, tomamos a pedagogia da alternância e o debate sobre Ecologia de Saberes. Como referência empírica, analisamos a LICENA – Licenciatura em Educação do Campo com habilitação em Ciências da Natureza, curso oferecido pela Universidade Federal de Viçosa.

 

Palavras-chave: Licenciatura em Educação do Campo; Agroecologia e educação para a liberdade; saberes populares e saberes científicos.

Keywords: Teacher training of rural educators; Agroecology and Education for Freedon; popular knowledge and scientific knowledge.

 

Introdução

 

A Educação do Campo (EdC) emerge como demanda dos movimentos sociais do campo, sobremaneira o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). A luta dos povos do campo é pela efetivação do direito ao acesso à escola NO campo e a conteúdos e processos de educação escolar que estejam em consonância com a realidade desses sujeitos coletivos, ou seja, uma escola DO campo. No contexto brasileiro, pensar numa educação no/do campo, que contribua para possibilitar a permanência digna no campo e para a autonomia dos povos do campo, implica em tocar em dois pontos, fortemente associados: a questão do acesso à terra e a dimensão das formas de relação e produção na terra.

Entendendo essa complexidade, consideramos pertinente e coerente tomar a agroecologia como elemento basilar na EdC. No entanto, diante de uma escola e uma universidade conservadoras, estes enlaces não são tão simples de se estabelecer. Neste trabalho apresentamos reflexões envolvendo os caminhos que vem sendo seguidos na efetivação das relações entre agroecologia e EdC, assim como os desafios colocados nesse caminhar. Como referência teórico-metodológica para tecer aproximações entre EdC e agroecologia, tomamos a pedagogia da alternância e o debate sobre Ecologia de Saberes. Como referência empírica, analisamos a LICENA – Licenciatura em Educação do Campo com habilitação em Ciências da Natureza, curso oferecido pela Universidade Federal de Viçosa, situada na Zona da Mata Mineira, no município de Viçosa.

 

Metodologia

  • Para a realização dessa pesquisa foi feita uma revisão de literatura relativas (1) à Educação do Campo, (2) à pedagogia da alternância e (3) à Ecologia de Saberes. Trata-se de temas os quais buscamos tecer enlaces e compreensões acerca das suas relações no contexto da construção de outros projetos de campo possíveis, cuja referência maior é a agroecologia. Partimos do entendimento de que a alternância como opção pedagógica, mas também político-operacional da EdC, apresenta grande potência em termos do efetivação do estreitamento de laços entre a EdC e agroecologia, no sentido de suas possibilidades enquanto promotora de uma Ecologia de Saberes, tão cara à agroecologia. Como base empírica analisamos o PPC (Projeto Pedagógico do Curso) da LICENA, no qual apontamos para a presença da agroecologia no âmbito da concepção, da história, da organização e da dinâmica do curso. Além da análise dos textos e documentos supracitados, também nos valemos de nossos relatos pessoais enquanto protagonistas do curso, como educadora e educando da LICENA. O horizonte de observação e reflexão são as potencialidades e desafios da alternância enquanto promotora de uma ecologia de saberes que possibilita e potencializa a presença da agroecologia na EdC.

 

Resultados e Discussão

 

Em decorrência da conquista da EdC na educação básica enquanto política pública, emerge a necessidade de formar sujeitos capazes de compreender e mediar processos pedagógicos com referência nas demandas expressas nessa modalidade de ensino. Assim são criadas as Licenciaturas em Educação do Campo, com suas diferentes habilitações e formas de organização pedagógica. No caso da LICENA, a habilitação é em Ciências da Natureza, sendo às/aos egressas/os possibilitada a atuação ensinando ciências no anos finais do ensino fundamental e no ensino médio, podendo atuar como docentes nas disciplinas de física, química e biologia.

Relativo à opção pela habilitação em ciências da natureza no momento da proposição do curso, um ponto que destacamos é a presença da agroecologia como um importante elemento que estimulou e orientou a concepção, a construção e a organização da LICENA. A emergência da proposta e a efetivação da LICENA deve ser compreendida no contexto de uma universidade na qual, de forma bastante desigual, formas de conceber, produzir e viver no campo estão em disputa, tal como exposto no seu PPC (Projeto Pedagógico do Curso):

 

...a UFV, que é reconhecida pela sua excelência em pesquisas e produtos orientados para o desenvolvimento do agronegócio, também tem consolidado, em seu interior, conjuntos de programas, projetos e ações de ensino, pesquisa e extensão orientados para agricultura de base agroecológica que, sob outro paradigma científico, educacional e de desenvolvimento, visam ao fortalecimento da agricultura familiar camponesa e da agroecologia em nossa sociedade, a partir de concepção holística e sistêmica das Ciências da Natureza. (PPC LICENA, 2018)

 

Nesse campo de disputas, o curso surge a partir de um diálogo de longa data que propiciou o desenvolvimento de uma relação profunda, marcada pelo respeito e pela confiança mútua entre grupos no interior da UFV, o CTA-ZM (Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata), organização que desde a década de 1980 vem promovendo a agroecologia na região, os movimentos e organizações sociais, como os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais da Zona da Mata e as EFAs (Escolas Família Agrícola), como também expresso no PPC da LICENA. Ainda como presente neste documento, a história da LICENA se insere nesse firmar do compromisso com a construção da agroecologia, o que se faz tanto em termos dos conteúdos veiculados no curso, como em seu enfoque metodológico que, seguindo a linha de ação de algumas das partes envolvidas, procura respeitar, resgatar e valorizar os conhecimentos de agricultores e agricultoras e articular tal conhecimento ao conhecimento científico com vistas na promoção da agroecologia.

Nesse sentido, de maneira coerente, a organização e funcionamento do curso em termos de tempos, espaços e sujeitos educativos se faz por meio da alternância, adequando os processos de formação às dinâmicas de trabalho e vida no campo, como garantido pela Lei de Diretrizes e Bases de 1996. A alternância, como pedagogia, se origina em 1935 através de uma experiência francesa decorrente da inquietação do pai de um jovem, membro do sindicato de agricultores, diante da insatisfação de seu filho em relação aos estudos na escola, posto que sua organização curricular se distanciava da realidade dos campos franceses (CORDEIRO, REIS e HAGE, 2015). Como destaca Nosella, no contexto de criação da alternância havia “um Estado desinteressado dos problemas do campo e voltado única e exclusivamente para a fórmula escolar urbana” (2012, p.46).

No âmbito da LICENA a alternância cumpre um importante papel na garantia da permanência dos sujeitos do campo na universidade. Pedagogicamente, seu sentido se alarga e aprofunda na direção da alternância ser tomada como forma de aproximar e promover o diálogo entre saberes existentes nos distintos espaços nos quais circulam as/os educandas/os, a universidade e seus territórios. Atualmente o regime de alternância na LICENA se faz por meio da realização semestral de dois Tempos Escola (TE), momento em que as/os educandas/os es permanecem na universidade, cuja duração varia entre duas e três semanas. Entre esses dois momentos, as/os educandas/os permanecem em seus territórios, seguindo com a realização de atividades acadêmicas indicadas pelas/os educadoras/es, no assim denominado Tempo Comunidade (TC).

A orientação é efetivar processos de ensino-aprendizagem que rompam com a canônica estrutura disciplinar e práticas pouco ou nada dialógicas, que invisibilizam os sujeitos e seus saberes e reforçam a supremacia do saber científico. Como indicado no PPC do curso e experienciado por nós, educadoras/es e educandas/os da LICENA, o curso proporciona e segue buscando caminhos para superar espaços, tempos e relações tradicionais de ensino, proporcionando uma formação profissional e cidadã ancorada no acúmulo das experiências, ações e espaços de aprendizagens desenvolvidos na trajetória da EdC e da agroecologia na UFV, como exposto do PPC do curso. A direção é efetivar uma experiência formativa que consiga fazer dialogar de maneira mais horizontal possível saberes científicos e saberes populares, tradicionais, saberes da experiência feito (FREIRE, 1987), ou seja, caminhar na direção da construção de uma Ecologia de Saberes (SANTOS, 2007).

Caminhar nessa direção no âmbito da formação de educadores dentro da universidade é algo muito desafiador na medida em que, nessa instituição, produtora e reprodutora da ciência moderna, os conhecimentos que são considerados como verdadeiros, como válidos, são aqueles que se fazem e se reproduzem a partir da racionalidade e dos critérios da ciência moderna. Os conhecimentos que não se fazem a partir dessa referência são ridicularizados, inferiorizados, invisibilizados. Em um mundo dividido por uma linha abissal entre o norte e o sul global, como propõe Santos (2007), o norte foi construído como espaço de produção do conhecimento verdadeiro, legítimo e no sul, o território do “outro”, não há conhecimento, ou trata-se de algo sem valor, inferior. Estas construções foram (e seguem sendo feitas) por meio de violentos processos de aniquilação dos povos, com isso seus saberes, além de processos de imposição de modos de pensar, fazer e ser no mundo, impondo a cultura dos “povos civilizados” do norte aos “povos primitivos” do sul. Nas tramas das estreitas relações entre poder e saber, na constituição de um saber superior representado por uma parte da humanidade, a ser tomado como universal, é preciso inferiorizar, negar o outro (SANTOS, 2007).

Neste processo histórico violências múltiplas constitui-se uma massa de oprimidos (FREIRE, 1987), sujeitos que, a despeito de toda opressão sofrida, resistem, lutam, sonham e constroem um mundo onde possam sobreviver, viver, viver dignamente; um mundo no qual sejam vistos como sujeitos humanos, portanto, sujeitos de saberes e capazes de aprender cada vez mais; um mundo no qual possam ter sua autonomia para escolher viver ou não no campo, autonomia e soberania para escolher o que e de que forma plantar e se relacionar com a terra e com outros seres que coabitam seus espaços de vivência. Estes são os sujeitos que hoje ingressam e se formam nas universidades em todo o país nas licenciaturas em educação do campo: agricultoras/es, indígenas, quilombolas, geraizeiras/os. Nessa direção, efetivar o direito à Educação do Campo numa perspectiva de uma educação para a liberdade (FREIRE, 1987), que caminhe no sentido de subsidiar a construção da autonomia e emancipação dos povos do campo, passa por tomar a agroecologia como eixo fundamental da sua formação.

 

Conclusões

  • Como debatemos nesse texto, a EdC é um direito conquistado recentemente pelos povos do campo. A busca é pela garantia do acesso e permanência desses sujeitos na educação escolar, além da efetivação do direito dos povos a uma educação que tenha consonância com suas dinâmicas de vida, de trabalho, com seus territórios e os saberes ali produzidos, contestando a pretensa universalidade e neutralidade da escola. Em seu movimento, denunciam a existência de uma tensão entre os conteúdos e as formas de organização e funcionamento hegemônico das escolas e o propõem, exigem uma escola que reconheça suas particularidades. Todavia, partir da materialidade concreta, em um movimento contraditório, acessar os conhecimentos hegemônicos se coloca como instrumento importante de luta no combate às pedagogias da dominação e na construção de outras pedagogias possíveis e desejáveis (ARROYO, 2012). No âmbito do saber, a EdC, assim com a agroecologia, não abre mão dos saberes científicos, tão importantes para a humanidade, mas questionam esses saberes como únicos ou superiores. Na construção de processos formativos de educadores do campo, considerando a luta pela emancipação dos povos do campo, a agroecologia se coloca como elemento fundamental a ser incorporado nas discussões desses cursos. Em sua perspectiva teórica e metodológica a agroecologia alimenta a EdC. Por outro lado, a EdC, por meio da pedagogia da alternância e seus instrumentos, promove, reforça e potencializa a agroecologia, na medida em que permite acessar conhecimentos invisibilizados e inferiorizados historicamente e articulá-los aos processos educativos na universidade.

 

Referências bibliográficas

 

ARROYO, Miguel Gonçales. Outros sujeitos, outras pedagogias. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

 

CORDEIRO, Georgino NK; REIS, Neilada Silva; HAGE, Salomão Mufarrej. Pedagogia da Alternância e seus desafios para assegurar a formação humana e dos sujeitos e a sustentabilidade do campo. Em aberto, v.24, n.85, p. 115-225, 2015.

 

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1987.

 

NOSELLA, Paolo. Origens da pedagogia da alternância no Brasil. 2012.

 

Universidade Federal de Viçosa. Projeto Pedagógico: Curso de Licenciatura em Educação do Campo – Habilitação em Ciências da Natureza. Viçosa, Minas Gerais, 2018.

 

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para Além do Pensamento Abissal: Das Linhas Globais a uma Ecologia de Saberes, Revista Crítica Ciências Sociais. 2007, 78, 03-46.

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Publicado

2020-08-04