Manejo agrobiodiverso em restauração florestal: uma experiência de agricultoras\es agroecológicas\os no Assentamento Oziel Alves III, Planaltina-DF.
Palavras-chave:
Agricultura Familiar Camponesa, Agrobiodiversidade, Restauração Agroecológica, Tecnologias ApropriadasResumo
Apresentação
O presente relato busca registrar e descrever atividades vinculadas a processos de desenvolvimento comunitário associados a processos produtivos próprios da transição e da reafirmação da Agroecologia frente a novos desafios e oportunidades, dentro da realidade específica em que se encontra a Comunidade em questão. Incluem-se questões como o incremento da renda familiar, a reprodução de serviços e recursos naturais (como biodiversidade, solo e água preservados), e a apropriação, pelas famílias agricultoras, de conhecimentos, teóricos e práticos, aplicados ao manejo produtivo da Paisagem como um todo. Será abordada assim a experiência coletiva de inserção de cultivos em desenho de Corredores Agroecológicos combinados à Semeadura Direta de Cerrado, no Assentamento Oziel Alves III, em Planaltina no Distrito Federal. Nos Corredores, o manejo incluiu, com especial centralidade, a produção coletiva de milho crioulo, variedade Taquaral, culminando com a realização da “Pamonhada de MiCria” (Milhos Crioulos Agroecológicos) na primeira celebração trimestral dos aniversariantes da associação agroecológica local, Aprospera, a fim de fomentar reflexão e planos de ação em torno da afirmação da soberania genética sobre os sistemas agroalimentares desenvolvidos com sistemas agroflorestais e integrados a Comunidades que Sustentam a Agricultura (CSAs).
Contextualização da experiência
O Rio São Bartolomeu nomeia a maior Bacia Hidrográfica do Distrito Federal em extensão, sendo formado nas proximidades de Planaltina (DF) pela união dos Ribeirões Pipiripau e Mestre d’Armas, incluindo áreas sensíveis como a Estação Ecológica de Águas Emendadas, de categorizada relevância de abrangência continental. É contributo original da Bacia Paraná/Paraguai que deságua entre Argentina e Uruguai, cortando boa parte do Território Nacional (ao mesmo que contribui para a Bacia Tocantins/Araguaia, por isso a acepção Emendadas).
Nesta região, nordeste do Distrito Federal, se localiza o Assentamento Oziel Alves III, no Núcleo Rural Pipiripau II, em antiga fazenda que sofreu décadas de exploração de monocultivos de grãos e eucalipto. Entretanto, os planejamentos e formações em torno de temas da Agroecologia que vislumbraram tanto a produção como a composição de Paisagem do Assentamento tendo como base o fortalecimento comunitário integrado à restauração ecológica, não contaram com condições objetivas para se materializar. Pesaram pressões em contrário, mais fortes na região, e os obstáculos à plena execução da Política de Reforma Agrária e das Políticas de apoio à Agricultura Familiar como um todo.
Neste contexto, a maior parte da Microbacia já foi alterada, tendo a vegetação original nas zonas rurais sido substituída, na maioria dos casos, por culturas anuais como soja e milho, cultivos de olerícolas seguindo o itinerário químico-industrial (convencionais), algumas pastagens e produção de madeira de eucalipto. No encontro com áreas urbanas, próxima da “cidade-bairro” de Planaltina, mas sobretudo pelo modelo de agricultura de larga escala promovido ao longo dos anos, a Microbacia apresenta avançado grau de degradação (entendida em termos de erosão genética e cultural) – provocativamente manifesta no padrão de relações com a cobertura nativa remanescente, em geral, quando muito, restrita a áreas não mecanizáveis destinadas a reservas legais, algumas APPs e Unidades de Conservação, com pouco ou nenhum vínculo com as atividades econômicas da agricultura familiar, apesar de grande potencial latente, em mercado e interesse regional. Considera-se reflexo desta erosão o desenvolvimento extremamente tímido do potencial econômico do agroextrativismo para a agricultura familiar, apesar da herança histórica e cultural, tanto produtiva como alimentar, presente no Território e entre os sujeitos que o compõem. Algumas iniciativas, porém, tem caminhado no sentido inverso da tendência geral, aproximando manejo agroecológico, incremento da biodiversidade nativa e incentivo a novas oportunidades de geração de renda, com o potencial de gerar efeitos benéficos sobre a paisagem e os serviços ambientais que podem proporcionar, inclusive enquanto fatores produtivos.
Neste sentido, tem-se destacado, pontual, mas articuladamente, na região de Planaltina o desenvolvimento de experiências diversas de produção tanto orgânica como agroecológica. Entre estas, se inclui o processo comunitário de adoção, transição e fortalecimento da Agroecologia (em suas múltiplas dimensões) em torno da Aprospera – Associação de Produtores Agroecológicos do Alto São Bartolomeu, cuja Sede e parte expressiva da sua base se localizam no Assentamento Oziel Alves III (OA-III). Neste caso, entre as dimensões do processo de fortalecimento da endogenia podemos incluir desde: (i) avanços nos sistemas produtivos (inserindo maior diversidade, em espécies e escalas temporais de produção); (ii) aos modos de escoamento da produção, gerando bons casos de estabilidade de renda (formação de redes relativamente estáveis de escoamento direto, via Comunidades que Sustentam a Agricultura); (iii) o modo de organização centrado em mutirões e o resgate de tradições culturais das regiões de entorno de origem; (iv) ao desenvolvimento e apropriação de conhecimentos e tecnologias, em articulação com entidades parceiras, e, de modo crescente, com Instituições de Pesquisa, Ensino e Extensão, incluindo a Universidade e o Instituto Federal de Brasília.
A Associação vem atuando na produção agroecológica por meio de organização social em mutirões, plantios agroalimentares, sistemas biodiversos, Sistemas Agroflorestais em diferentes níveis de complexidade e integração com os sistemas produtivos de geração de renda, recompondo a paisagem do Território. Destaca-se entre parte das famílias a (re)construção das relações de escoamento que envolvem as CSAs (da sigla, em inglês, Community Supported Agriculture), traduzida localmente como Comunidades que Sustentam a Agricultura, atingindo, ainda que em níveis variados dos envolvidos, um novo patamar na relação Campo-Cidade, chegando a envolver “co-agricultores” (consumidores) em planejamentos, manejos e organização coletiva de logística e comunicação, em conjunto com as famílias agricultoras. Recentemente, a forma como se expandiu a ideia de CSA’s tem sido reconhecida como uma Tecnologia Social que apresenta alternativas para apoiar a produção local de alimentos orgânicos e agroecológicos, promovendo espaços de interação entre as pessoas na cidade e no campo.
A área Sede da Aprospera (2 hectares) faz parte de uma área coletiva maior do Assentamento (que ultrapassa os 30ha), composta por uma área pedregosa com um Cerrado remanescente e, na quase totalidade até a intervenção, pela predominância de capins exóticos (brachiária e andropogon), gerando frequente risco de fogo pelo “combustível” não manejado. Por meio da empresa Semeia Cerrado, especializada em trabalhos de restauração via Semeadura Direta, contratada via Programa Águas Brasil, coordenado pela OnG WWF e Fundação Banco do Brasil, foi realizada a semeadura da “muvuca mecanizada” de sementes de Cerrado para recomposição de 20,18 hectares desta área. Pela natureza característica da Associação, de produtores agroecológicos, propusemos o diálogo entre diferentes técnicas de plantio (semeadura direta, sistemas agroflorestais, enriquecimento, corredores agroecológicos), a fim de envolver a comunidade do Assentamento no processo de restauração e vislumbrar oportunidades produtivas e de geração de renda, bem como de novos conhecimentos, a partir desta intervenção. Acabamos por nomear de “SACI” - Sistemas Agrobiodiversos Cerratenses Inclusivos, este esforço, ainda francamente inicial, de desenhar sistemas e manejos que incluam em seu planejamento produtivo ao longo do tempo a inserção de espécies diversas de Cerrado, seja ligada ao agroextrativismo, seja à coleta de sementes para usos diversos, entre eles, a própria demanda crescente por restauração via Semeadura Direta, em vez de Plantio de Mudas.
Desenvolvimento da experiência
A Semeadura Direta é uma técnica comparativamente econômica indicada para restaurar áreas degradadas mecanizáveis, valendo-se de grande quantidade de espécies e, sobretudo, grande volume de sementes nativas, a fim de promover condições para uma dinâmica de sucessão ecológica capaz de substituir a vegetação espontânea, exótica, que, em geral domina a área em desequilíbrio monocultural. Foi realizado preparo de solo com gradeamento, niveladora e roçada em pontos menos mecanizáveis dos 20ha, a fim de permitir o desenvolvimento da sucessão natural de espécies do Cerrado semeadas, incluindo a introdução de gramíneas nativas para rápida cobertura de solo como elementos de resiliência e criação de condições para o desenvolvimento das espécies arbustivas e arbóreas próprias do Cerrado – a fim de formar, prioritariamente, área coletiva de agroextrativismo e de coleta de sementes junto à iniciativa de recomposição de vegetação nativa. No início das chuvas, meados de novembro de 2018, a empresa responsável pelo projeto de restauração realizou em cerca de 2 dias a semeadura com calcareadeira adaptada, em técnica em vias de aperfeiçoamento para redução de custos e ganho de escala na recomposição de vegetação nativa. Para o enterrio de algumas sementes, avaliou-se a conveniência de novo nivelamento ou mesmo de rolo, tendo-se observado o efeito da passagem das rodas do trator na germinação das espécies do ciclo inicial.
As sementes de Cerrado foram adquiridas pela empresa Semeia Cerrado, em sua maioria, da jovem Associação Cerrado de Pé, que reúne cerca de 80 famílias coletoras de sementes na região da Chapada dos Veadeiros, totalizando 2,5 toneladas de sementes arbóreas, arbustos, subarbustos, gramíneas e ervas nativas.
Com a muvuca mecanizada realizada, estimulou-se o afloramento do saber camponês com a participação direta de sujeitos da comunidade, um grupo de 6 agricultores decidiram incluir plantio de feijão-catador e amendoim, adotando em dezembro o desenho dos Corredores Agroecológicos para produção de milho com tobata e sulcadeira em linhas compostas com linhas de 4 variedades de leguminosas e gergelim-preto (com finalidade produtiva direta e indireta, para favorecer o controle natural de “pragas” do milho, tais como lagartas e formigas) e as sementes florestais de jatobá, tamboril, jenipapo, mutamba e mirindiba. Com apoio de estudante do Instituto Federal que acompanha o trabalho dos pesquisadores Cynthia e Altair Toledo Machado, da Embrapa Cerrados, com Melhoramento Participativo de Sementes articulados ao Movimento Camponês Popular (MCP), dispomos da variedade crioula Taquaral de milho, tradicionalmente utilizado para produção de pamonha.
Desafios
Um dos desafios-chave para o salto de escala da Agroecologia é aliar, em uma mesma atividade, a produção agrícola e a reprodução de serviços ambientais, sendo também expressão sua, na agricultura familiar agroecológica, em seus pequenos espaços, a ampliação da cobertura vegetal com espécies nativas (pouco demandantes de recursos exógenos) aliada à geração de renda – direta e indiretamente, a ser mais bem mensurada, através da promoção das suas condições naturais de reprodução, ou em outras palavras, dos serviços agroambientais que pode promover. Neste sentido, em sintonia com iniciativas de parceiros, programas e projetos articulados no Território, buscou-se promover tanto a técnica de Semeadura, como a coleta de sementes para comercialização através da aplicação prática de novos conhecimentos e técnicas.
Principais resultados alcançados
Foram e seguem sendo realizadas observações em campo e discussões a respeito da condução da restauração, bem como panejamento produtivo da área, envolvendo pesquisadores, docentes, estudantes, parceiros diversos e agricultores. O objetivo é, neste processo contínuo, permitir, além do manejo e geração de renda na área, extrair informações e observações que permita aos agricultores do Território dispor de recursos técnicos e materiais para incrementar em suas roças, tanto agrobiodiversidade como renda. No experimento, foram colhidas 25 caixas de feijão-verde e comercializadas a maior parte na feira de Planaltina-DF. O feijão-catador na vagem foi vendido a preço de convencional, e debulhado em vendas diretas.
Em 27 de março de 2019, em dia de mutirão da Aprospera, entre cerca de 30 pessoas (associadas, crianças, jovens e parceiros) foi realizada a colheita do milho Taquaral verde para a “pamonhada crioula”. Colhido o Milho da área de restauração foi levado à Sede da Associação, onde foi descascado, limpo em mutirão e ralado utilizando-se uma máquina que o agricultor Pedro Malaquias montou para esta finalidade.
No preparo das pamonhas crioulas, buscou-se ressaltar práticas culturais agregadoras, potencializando o envolvimento de agricultores e parceiros. A “Pamonhada de Mi Cria” sintetizou o fortalecimento comunitário através da produção e preparo de alimento de alto valor genético, oriunda de bem sucedido processo comunitário do campesinato goiano, cuja experiência desejamos intercambiar mais entre agricultores do Território.
Disseminação da experiência
Realizou-se a colheita das sementes de milho crioulo Taquaral, para beneficiamento e planejamento do próximo plantio, em parceria no planejamento e tabulação de dados com pesquisadores e extensionistas ligados ao Núcleo de Agroecologia da Universidade de Brasília, além de outras entidades parceiras, ligadas à Agroecologia no Distrito Federal e em outros Territórios. Estão sendo colhidos gergelim-preto e feijão de porco, aguardando-se para colher também amendoim e feijão-guandu. Em integração com o NEA/UnB estão sendo previstas atividades coletivas em manejos na área, a fim de consolidar a área como Unidade Demonstrativa e de experimentação produtiva, em processo de ampliação da Agrobiodiversidade. Inclui-se na proposta o desenvolvimento coletivo de ferramentas/máquinas e desenhos de manejo para ampliação de escala, planejamento da produção de biomassa, inclusão de novas sementes florestais e gramíneas nativas voltadas para geração de renda e usos diversos do agroextrativismo junto à coleta de sementes. A área tem recebido visitas de pesquisadores e grupos de estudantes de órgãos como o ICMBio, departamentos diversos da Universidade de Brasília, comunidades de assentamentos parceiros, tanto da Bacia do Pipiripau como do Descoberto, e estudantes de Agroecologia, do Instituto Federal de Brasília, desenvolvendo atividade de inventário florestal das áreas remanescentes do Cerrado que estão interligadas com o “SACI”.
Em articulação com a OnG Mutirão Agroflorestal, Programa Águas Brasil e a Rede de Sementes do Cerrado, foram realizados intercâmbios, oficinas culminando com a formação embrionária de grupo de coletores envolvendo pessoas do Território, do próprio assentamento e de outras comunidades.